quarta-feira, 25 de abril de 2012

Abril



Havia anos, muitos anos, que o povo esquecera a liberdade

muitos, muitos anos, que havia patronos a dirigirem a vida de todos


gerações que nasciam e morriam sem levantar a cabeça


sem poderem olhar-se ao espelho, sem abrirem a janela do pensamento.


Raros os que rompiam o silêncio opressivo que se respirava na nação


raríssimos os que, arriscando a vida e o sossego, saíam à rua


cantavam nas praças, gritavam a dor de todos os esquecidos.


Os avós reprimiam os netos, os maridos as mulheres, estas os filhos


o silêncio doloroso pairava por sobre todo o território


o degredo, a prisão, a loucura, a morte, a desgraça.


Mesmos os suspiros careciam de carimbos e autorização


os pensamentos escondiam-se nos recantos do cérebro


com receio de os seus ecos serem ouvidos pelos esbirros do poder.


Os encontros eram sempre furtivos e clandestinos


as cabeças espreitavam por sobre os ombros, cheirando o medo.


Pátria, deus e família, fátima, fado e futebol, fome, ignorância, destino


todos de chapéu na mão direita e na esquerda a bandeira


no peito o receio, nas costas o peso do mundo, no bolso a miséria


o futuro destinado e planeado por quem sabia, por quem comandava


a vida regulada pela subserviência, pela sobrevivência, pelo fatalismo


e muita, muita gente, cansada, adormecida, ausente, conformada


e muita, muita gente, que procurava no mundo o que não possuía em casa.


A guerra como pano de fundo, o emprego como moeda de troca


o fatalismo de quem veste de preto por fora e por dentro a bem da nação


as paredes invisíveis que separavam os outros de nós, nós dos outros


os outros que antevíamos com esperança como eleitos da sorte


que achávamos que nunca poderíamos igualar e alcançar


a vergonha de ter de explicar porque não lutávamos


porque deixávamos que nos esmagassem, que nos controlassem


a troco de trinta moedas, de paz podre, de felicidade pobre.


Quatro paredes caiadas, um cheiro a alecrim, uma imagem benta.


Um dia, uma madrugada de abril, um alvoroço anunciado.


A liberdade partiu as janelas e entrou violentamente


pela mão dos mesmos que a tinham ignorado toda a vida


pelo cansaço da força das armas dos que mantinham o poder


pelos braços ao alto dos que não podiam calar mais a desgraça


pelas flores rubras que substituíram as balas desnecessárias.


Gritar até que a vós nos doa, cantar até que valha a pena.


Agora vamos ser felizes, vamos salvar a pátria e o mundo


não haverá mais enganos, dor, servidão, injustiça


finalmente vai cumprir-se o destino do povo e de Portugal.


Nem mais um soldado para a guerra, nem mais um colono!


O povo envolveu-se no turbilhão dos sentimentos, da paixão


tudo parecia, finalmente, fazer sentido, ser urgente, ser real


todos os excessos eram necessários, toda a catarse precisa, inadiável


éramos todos irmãos separados há muito pelos muros da opressão


tínhamos, por fim, um destino comum a cumprir, a honrar.


A Península, a Europa, o Mundo, o Universo, tudo


A embriagues do espaço infinito, a volúpia da liberdade encontrada.


Festejámos tão distraídos que não demos pela passagem do tempo


que não vimos que as praças ficavam outra vez cinzentas


que podíamos falar, gritar, cantar, mas ninguém ouvia


que os novos senhores voltavam a ocupar as velhas cadeiras


que os ecos da alegria louca se estavam a transformar em soluços.


Agora o opressor não está isolado na torre de marfim de outrora


o ditador não mora, mais, no palácio distante e sombrio


os novos donos da nossa vida não têm cara nem nome.


Não se conhece quem são e moram em toda a parte


são difíceis de identificar e, mais ainda, de combater


Já não há salazares, há mercados, não há pide há ratings


os donos da nossa liberdade negoceiam na sombra profunda


o destino das nossas vidas está entregue a entidades obscuras


os defensores do povo, os paladinos da justiça, os heróis de outrora


decidem o destino dos povos nas costas do povo, secretamente.


Todo o poder é corruptor, toda a opressão é criminosa.


Não depende da cor, do estado, do estatuto de quem exerce


As madrugadas de Abril também têm prazo de validade


Deviam ser renovadas sempre que se degradassem



Jose Julio
 

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