Abril
Havia anos, muitos anos, que o povo esquecera a liberdade
muitos, muitos anos, que havia patronos a dirigirem a vida de todos
gerações que nasciam e morriam sem levantar a cabeça
sem poderem olhar-se ao espelho, sem abrirem a janela do pensamento.
Raros os que rompiam o silêncio opressivo que se respirava na nação
raríssimos os que, arriscando a vida e o sossego, saíam à rua
cantavam nas praças, gritavam a dor de todos os esquecidos.
Os avós reprimiam os netos, os maridos as mulheres, estas os filhos
o silêncio doloroso pairava por sobre todo o território
o degredo, a prisão, a loucura, a morte, a desgraça.
Mesmos os suspiros careciam de carimbos e autorização
os pensamentos escondiam-se nos recantos do cérebro
com receio de os seus ecos serem ouvidos pelos esbirros do poder.
Os encontros eram sempre furtivos e clandestinos
as cabeças espreitavam por sobre os ombros, cheirando o medo.
Pátria, deus e família, fátima, fado e futebol, fome, ignorância, destino
todos de chapéu na mão direita e na esquerda a bandeira
no peito o receio, nas costas o peso do mundo, no bolso a miséria
o futuro destinado e planeado por quem sabia, por quem comandava
a vida regulada pela subserviência, pela sobrevivência, pelo fatalismo
e muita, muita gente, cansada, adormecida, ausente, conformada
e muita, muita gente, que procurava no mundo o que não possuía em casa.
A guerra como pano de fundo, o emprego como moeda de troca
o fatalismo de quem veste de preto por fora e por dentro a bem da nação
as paredes invisíveis que separavam os outros de nós, nós dos outros
os outros que antevíamos com esperança como eleitos da sorte
que achávamos que nunca poderíamos igualar e alcançar
a vergonha de ter de explicar porque não lutávamos
porque deixávamos que nos esmagassem, que nos controlassem
a troco de trinta moedas, de paz podre, de felicidade pobre.
Quatro paredes caiadas, um cheiro a alecrim, uma imagem benta.
Um dia, uma madrugada de abril, um alvoroço anunciado.
A liberdade partiu as janelas e entrou violentamente
pela mão dos mesmos que a tinham ignorado toda a vida
pelo cansaço da força das armas dos que mantinham o poder
pelos braços ao alto dos que não podiam calar mais a desgraça
pelas flores rubras que substituíram as balas desnecessárias.
Gritar até que a vós nos doa, cantar até que valha a pena.
Agora vamos ser felizes, vamos salvar a pátria e o mundo
não haverá mais enganos, dor, servidão, injustiça
finalmente vai cumprir-se o destino do povo e de Portugal.
Nem mais um soldado para a guerra, nem mais um colono!
O povo envolveu-se no turbilhão dos sentimentos, da paixão
tudo parecia, finalmente, fazer sentido, ser urgente, ser real
todos os excessos eram necessários, toda a catarse precisa, inadiável
éramos todos irmãos separados há muito pelos muros da opressão
tínhamos, por fim, um destino comum a cumprir, a honrar.
A Península, a Europa, o Mundo, o Universo, tudo
A embriagues do espaço infinito, a volúpia da liberdade encontrada.
Festejámos tão distraídos que não demos pela passagem do tempo
que não vimos que as praças ficavam outra vez cinzentas
que podíamos falar, gritar, cantar, mas ninguém ouvia
que os novos senhores voltavam a ocupar as velhas cadeiras
que os ecos da alegria louca se estavam a transformar em soluços.
Agora o opressor não está isolado na torre de marfim de outrora
o ditador não mora, mais, no palácio distante e sombrio
os novos donos da nossa vida não têm cara nem nome.
Não se conhece quem são e moram em toda a parte
são difíceis de identificar e, mais ainda, de combater
Já não há salazares, há mercados, não há pide há ratings
os donos da nossa liberdade negoceiam na sombra profunda
o destino das nossas vidas está entregue a entidades obscuras
os defensores do povo, os paladinos da justiça, os heróis de outrora
decidem o destino dos povos nas costas do povo, secretamente.
Todo o poder é corruptor, toda a opressão é criminosa.
Não depende da cor, do estado, do estatuto de quem exerce
As madrugadas de Abril também têm prazo de validade
Deviam ser renovadas sempre que se degradassem
Jose Julio
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